Arquitectura
Geração africana | ||||
Uma geração de arquitectos portugueses deixou uma vasta obra em Angola e Moçambique.
Realizada no terceiro quartel do século, esta foi uma produção de vanguarda extremamente inovadora e realizada no espaço
colonial africano que importa agora salvaguardar
Alguns já ali viviam, inseridos no meio colonial, e vieram à Metrópole de então completar os seus estudos. Foi o caso de Vasco Vieira da Costa (1911-1982), natural de Aveiro, que estudou-trabalhou com Le Corbusier e tem uma obra notável em Luanda, desde o inovador mercado Quinaxixe (de 1950-52, quando muitas obras homólogas do Portugal ibérico eram tradicionalistas e revivalistas), ao bloco da Mutamba (dois grandiosos prismas ao alto, de 68-69, hoje o Ministério do Urbanismo e Obras Públicas). Mas outros, então recém-formados, foram para África «para se libertarem», para seguirem a sua vida profissional de um modo mais aberto e moderno, coisa aparentemente simples e normal, mas que sentiam lhes era de algum modo negada ou dificultada na pátria europeia.
Foi também o caso de Castro Rodrigues (1920), o assinalável «arquitecto do Lobito», que com generosidade e talento ofereceu a sua vida profissional à que se tornou na época a segunda cidade angolana. Apesar de vigiado pela PIDE, Rodrigues conseguiu fixar-se no Lobito em 53 e lá realizou uma verdadeira «obra global», enquanto discreto mas activo funcionário municipal. Foi planeador, urbanista e arquitecto, realizando para a novas áreas de expansão urbana muitos dos melhores equipamentos (entre 64-66), em desenho caracteristicamente leve e moderno, como o liceu, o mercado, o aeroporto, o elegante cine-esplanada Flamingo. Rodrigues teve um percurso excepcional em Angola, pois «ficou», por adesão e gosto, depois das independências, contribuindo para a organização do curso de arquitectura da jovem RPA, até 87. Convidado pelo município do Lobito para as comemorações da cidade, ali voltou em 93, honrado e comovido. Já o arquitecto natural de Luanda Fernão Simões de Carvalho, que também tirocinou no atelier de Le Corbusier, é uma figura de actividade mais diversificada, com obras em Luanda, mas também em Lisboa e no Brasil. Entre 63 e 65, foi autor, com Pinto da Cunha, do hospital do Lubango (ex-Sá da Bandeira); e, também com Fernando Alfredo Pereira, do Bairro Prenda luandense. Teve uma intervenção persistente, formativa e continuada no planeamento municipal de Luanda.
Em Angola, refiram-se ainda nomes como o de António Campino, com o Hotel Presidente ou a Auto Avenida, em Luanda; o dos irmãos Garcia de Castilho, pioneiros da década de 50, que edificaram em Luanda o grandioso Cinema Restauração ou o edifício Mobil (1951); o de Fernando Batalha(1908), que trabalhou para os Monumentos Nacionais de Angola; o de Pereira da Costa (com o Prédio Cirilo, do «ciclo do café», de 59); o de Luís Taquelim (nascido no Algarve, ao que parece autor do Hotel do Moxico/Vila Luso). E sem esquecer passagens mais fugazes, mas assinaladas por uma acção inconformista, como a de Francisco Silva Dias (1930), que lhe valeu a demissão da Câmara de Luanda (atreveu-se a defender publicamente que o planeamento fosse liderado por arquitectos municipais!) - mesmo assim autor do projecto da escola técnica de Saurimo, na longínqua Lunda, de 59 (obra que há dias descobriu, surpreso, ter sido edificada); ou a de Nuno Teotónio Pereira e Bartolomeu Costa Cabral, autores de uma pequena «minicidade industrial» moderna para a Empresa da Celulose (Alto Catumbela, Benguela - 58-59).
Em Moçambique há também uma série de autores e obras de grande qualidade. Além de Amâncio Miranda Guedes (ou Pancho Guedes, Lisboa, 1925), já mais conhecido e premiado pela sua original e diversificada obra laurentina, e de outros mais novos (José Forjaz, Coimbra, 1936) - há que mencionar arquitectos injustamente desconhecidos ou esquecidos: João José Tinoco (1983), autor de notáveis obras modernas adaptadas ao contexto climático (aerogare de Nampula; sede do Governo do Niassa, em Lichinga, - 66-68); José Porto (1963), autor do portentoso Grande Hotel da Beira e de vários edifícios no centro da cidade, dos anos 40-50; Francisco de Castro (projectista da estação ferroviária da Beira); ou ainda Garizo do Carmo (cinema S. Jorge, Beira). E sem esquecer, de novo, os autores com passagem pontual pelo território, como José Gomes Bastos (1914-1991), autor do esplêndido e superdecorado BNU de Lourenço Marques (hoje o Banco de Moçambique no Maputo). O que impressiona, no conjunto destas obras, é a dimensão inovadora e moderna, sem pudores, receios ou hesitações, embora criada em plena situação colonial, e em muitos casos «superprovinciana». O que se admira e estima é a grandeza de vistas, culturais, técnicas e artísticas de uma geração de «migrantes profissionais», que, trabalhando muitas vezes em contextos da administração oficial, pôde lançar «novas cidades», plenas de novíssima arquitectura moderna, pelas várias e vastas regiões dos territórios então luso-africanos. Sobretudo entre 1950 e 1975. Porque há que o dizer, um quarto de século depois da gesta terminada, com alguma objectividade, esta arquitectura e este urbanismo atingiram qualidade e dimensão superior à praticada na mesma época na «Metrópole». E só uma situação de confiança plena na inovação, de entusiasmo colectivo, de consonância apesar das diferenças (entre Estado, promotores privados, acção municipal) e de entendimento e aceitação de uma nova escala geográfica, económica e social (com alguma ingenuidade e gosto pela descoberta, que é benéfica nestes casos) podem explicar este facto. Por contraste com uma sociedade metropolitana, que resistiu à modernização, na «África Portuguesa» do terceiro quartel do século foi possível experimentar e mesmo alimentar e instaurar a novidade e a modernidade dos espaços e das arquitecturas, num período de 25 anos, aliás único do contexto europeu, dado que os países europeus (democráticos no pós-II Guerra Mundial) tinham na quase totalidade abandonado já os territórios africanos coloniais até 60-61. Neste período, ironicamente, Portugal foi assim o «caso único» de uma nação com regime político retrógrado a nível europeu que teve uma produção de vanguarda inovadora no seu espaço colonial africano. Agora, olhando o futuro possível deste enorme legado material, entre cidades e edifícios, há que o saber inserir (o que sobra, e é recuperável) no contexto novo da reconstrução pós-guerras civis, nas novas nações da Guiné-Bissau, de Moçambique, e esperemos que em breve, de Angola. Conhecendo o valor do que existe, melhor o poderão recuperar, reutilizar e integrar. Texto de JOSÉ MANUEL FERNANDES
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